segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ler Pouco:



Jovem, eu sonhava ter uma grande biblioteca. E fui assim pela vida, comprando os livros que podia. Tive de desenvolver métodos para controlar minha voracidade, porque o dinheiro e o tempo eram poucos. Entrava na livraria, separava todos os livros que desejava comprar e, ao me aproximar do caixa, colocava-os sobre o balcão e me perguntava diante de cada um: “ Tenho necessidade imediata desse livro? Tenho outros, em casa, ainda não lidos? Posso esperar?” E assim ia pegando cada um deles e os devolvendo às prateleiras. A despeito desse método de controle cheguei a ter uma biblioteca significativa, mais do que suficiente para as minhas necessidades.


Notei, à medida em que envelhecia, uma mudança nas minhas preferências: passei a ter mais prazer na seção dos livros de arte nas livrarias. Os livros de ciência a gente lê uma vez, fica sabendo e não tem necessidade de ler de novo. Com os livros de arte acontece diferente. Cada vez que os abrimos é um encantamento novo! Creio que meu amor pelos livros de arte têm a ver com experiências infantis.


Talvez que os psicanalistas interpretem esse amor como uma manifestação neurótica de regressão. Não me incomodo. Pois, em oposição à psicanálise que considera a infância como um período de imaturidade que deve ser ultrapassado para que nos tornemos adultos, eu, inspirado por teólogos e poetas, considero a maturidade como uma doença a ser curada. Bem reza a Adélia Prado: “ Meu Deus, me dá cinco anos, me cura de ser grande…” E não pensem que isso é maluquice de poeta. Peter Berger, um sociólogo inteligente e com senso de humor, definiu “maturidade”, essa qualidade tão valorizada, como “ um estado de mente que se acomodou, ajustou-se ao status quo e abandonou os sonhos selvagens de aventura e realização…” Menino de cinco anos, eu passava horas vendo um livro da minha mãe, cheio de figuras. Lembro-me: uma delas era um prédio de dez andares com a seguinte explicação: “Nos Estados Unidos há casas de dez andares.” E havia a figura de um caçador de jacarés, e de crianças esquimós saudando a chegada do sol.


O fato é que comecei a mudar os meus gostos e chegou um momento em que, olhando para aquelas estantes cheias de livros, eu me perguntei: “Já sou velho. Terei tempo de ler todos esses livros? Eu quero ler todos esses livros?” Não, nem tenho tempo e nem quero. Então, por que guardá-los? Resolvi dar os livros que eu não amava. Compreendi, então, que não se pode falar em amor pelos livros, em geral. Um homem que diz amar todas as mulheres na verdade não ama nenhuma. Nunca se apaixonará. O mesmo vale para os livros. Assim, fui aos meus livros com a pergunta: “Você me ama?” (Acha que estou louco? É Roland Barthes que declara que o texto tem de dar provas de que me deseja. Há muitos livros que dão provas de que me odeiam. Outros me ignoram totalmente, nada querem de mim… ). “Vou querer ler você de novo?” Se as respostas eram negativas o livro era separado para ser dado.


Essa coisa de “amor universal aos livros” fez-me lembrar um texto de Nietzsche sobre o filósofo Tales de Mileto, em que ele recorda que “a palavra grega que designa o “sábio” se prende, etimologicamente, a sapio, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, o homem de gosto mais apurado; um apurado degustar e distinguir, um significativo discernimento, constitui, pois, (…) a arte peculiar do filósofo. (…) A ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se sobre tudo o que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a qualquer preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas…” E depois, no Zaratustra, ele comenta com ironia: “Mastigar e digerir tudo – essa é uma maneira suina.”


O fato é que muitos estudantes são obrigados a ler à maneira suina, mastigando e engolindo o que não desejam. Depois, é claro, vomitam tudo… Como eu já passei dessa fase, posso me entregar ao prazer de ler os livros à maneira canina. Nenhum cachorro abocanha a comida. Primeiro ele cheira. Se o nariz não disser “sim” ele não come. Faço o mesmo com os livros. Primeiro cheiro. O que procuro? O cheiro do escritor. Se não tem cheiro humano, não como. Nietzsche também cheirava primeiro. Dizia só amar os livros escritos com sangue.


Ler é um ritual antropofágico. Sabia disso Murilo Mendes quando escreveu: “No tempo em que eu não era antropófago, isto é, no tempo em que eu não devorava livros – e os livros não são homens, não contém a substância, o próprio sangue do homem?” A antropofagia não se fazia por razões alimentares. Fazia-se por razões mágicas. Quem come a carne do sacrificado se apropria das virtudes que moravam no seu corpo. Como na eucaristia cristã, que é um ritual antropofágico: “Esse pão é a minha carne, esse vinho é o meu sangue…” Cada livro é um sacramento. Cada leitura é um ritual mágico. Quem lê um livro escrito com sangue corre o risco de ficar parecido com o escritor. Já aconteceu comigo…






Rubem Alves

2 comentários:

  1. posso falar do meu grande paradoxo torturante?

    inverna no meio-inferno que é Manaus, um inverno de meio-frio de gotas que te furam se vc as encaram de peito aberto. Mas mesmo na nublação ou na chuva, ou no mormaço( não se definem os tempos em Manaus)Eu,Corpo-Ator-mentado, acredito em uma aridez permanente dos sentidos, justamente por causa do paradoxo que é Ler e que é Escrever. Me trava os olhos, me trava os pensares, me trava as mãos, a angústia de não captar o que antes era uma falta de vergonha necessária. Não estou desavergonhado e sofro.
    "Olho(ou olhe) os livros na minha estante que nada dizem de importante servem só pra quem não sabe ler". Me encontro neste estado que Raul Seixas musicou.
    em contrapartida encontrei uma senhora maravilhosa que tirou um pouco desse excesso de desespero que é meu combustível atual. seu nome é Vera Du val uma nascida paulista mas amazonense de Paixão, seus textos fizeram-se famosos por esses tempos e indico-a para vc( talvez tenha alguma coisa dela disponivel na internet, ela trabalha com contos). Uma frase dela me atingiu, um escarro sincero e materno saído de um debate onde eu era só mais um ouvinte, coisa simples mas rica: "O livro só é bom quando é lido, quando ele mantêm comunicação com o sujeito, enquanto ele habita em estantes, ele não existe". Parece coisa boba, mas encarnar isso é talvez descobrir mundos que há muito fazemos inexistir.
    O ler se expande do papel para a matéria de todas as coisas que têm simbolização LÁ ME PONHO EU EM PARADOXO.

    "a verdade espia as nossas linhas sempre pronta a intervir no que é lido, no que é escrito. têm os que não a ouvem, têm os que a ouvem. Os flagelos ficam certamente para esses não-surdos"

    falei demasiado
    beijos e abraços internáuticos!

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  2. "Não há como saber de leitura se não conhecemos um bom livro"
    Um bom livro é aquele que quando termina, ficamos triste por ter terminado, um bom livro é quando nos emocionamos ao virar ás páginas.
    Gostei muito quando Vera do Val diz sobre suas raízes: "Sou paulista, amo meu Tietê.Mas quem viu o Negro, nunca mais vai esquecer. Ele é único"!
    Acho que um livro quando é bom, é assim também, dificíl de esquecer, e mais difícil tira-lo da estante.

    Graças Ramon, gostei muito do seu comentário!

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